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sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Exemplo de cidadania da elite curitibana

SOS Cidadania


Há poucos dias conduzia meu veículo pela famosa Avenida Silva Jardim, área tradicionalmente nobre de Curitiba, quando o motor do carro, subitamente, apagou.

Iniciou-se aí uma experiência curiosa, sobretudo do ponto de vista atropológico. Passado o momento de perplexidade meu e dos impacientes motoristas que se acumularam num sonoro coro de buzinas, recebi o apoio da Guarda Municipal, cujos agentes foram solícitos e, inclusive, ajudaram a empurrar o veículo para uma área privativa de um prédio da avenida. Tiramos o carro da pista, sem bloquear a passagem dos transeuntes, mas automóvel passou a obstruir uma das pistas que dá acesso ao portão único de um belo prédio e aí que começaram os meus problemas.

Sem perder tempo, telefonei ao corretor de seguros que, prontamente, providenciou um mecânico que estava há uns quarenta minutos do local, seguido de um guincho que levou outros 50 minutinhos adicionais para chegar. Foram os noventa minutos mais sufocantes que já passei no trânsito curitibano "guiando" os acontecimentos causados pelo meu carro parado. Dez minutos do primeiro tempo: apertei o botão para chamar o porteiro do prédio e dei a ele ciência do incidente e informei que a situação já estava em vias de ser solucionada. Pelo interfone ele rosnou qualquer coisa que não consegui compreender. Quinze minutos: veio o porteiro, numa panca de general de dez estrelas e, com a delicadeza de elefante em loja de cristal, me mandou tirar o carro dali. Re-expliquei que o carro quebrou involuntariamente e que o socorro estava a caminho. Mas nada adiantou. Em tom de ameaça, o general disse que então iria tomar as providências.

Nos quinze minutos seguintes, fiquei dividido entre a emoção de receber uma bala perdida ou de ver meu carro destruído por golpes de taco de beisebol. Felizmente o general trilhou outro caminho e chamou o seu chefe superior, Vossa Excelência, o síndico. Entraram um, dois, três, quatro carros no prédio. Sinalizei com o triângulo, deixei o veículo exatamente onde os agentes de trânsito apontaram e fiquei por ali, orientando os motoristas e aguardando o socorro. Até os quarenta minutos do primeiro tempo, recebi apenas grosserias dos moradores que ficaram "furiosos" por ter que desviar quatro metros o seu trajeto da entrada do único portão do prédio. Final do primeiro tempo: cansado, desfiz toda a agenda de compromissos e, notei que estava me sentindo como uma espécie de criminoso, por bloquear uma das pistas de acesso ao palácio. Estava exausto.

Primeiro minuto do segundo tempo: finalmente recebi o mecânico. Olhou, mexeu, olhou de novo, mexeu mais um pouquinho e disse que ia ter que chamar o guincho. Aí veio o tal do síndico: o porteiro era uma verdadeira moça perto do síndico. Êta homem grosso! Há dez metros de distância já veio falando alto e gesticulando, dizendo que era para eu colocar o carro em outro lugar. Disse a ele que eu não poderia fazer isso sozinho e que o guincho já estava a caminho. "E eu com isso? Aqui é propriedade privada e você vai tirar o carro daí agora" -respondeu o homem com o rei na barriga. Pedi desculpas aos dezoito minutos da etapa complementar. Duas, três, na quarta eu disse que sabia que aquilo era um inconveniente para todos, mas que não foi uma escolha minha quebrar o carro ali e que tudo o que estava a meu alcance, já havia sido feito. Nada comovia o implacável senhor. Saiu em galopes anunciando, aos quatro ventos, que eu iria me arrepender. Aí eu imaginei: quem virá? Será o Presidente do Senado do prédio? Aí, como diria a Marta, não tive outra opção: relaxei e gozei.

Foram oito pessoas que se aproximaram a partir daí. Seis para reclamar, criticar e ameaçar. Duas, para oferecer ajuda. Uma destas pessoas, era um dócil e educado morador do prédio. Enquanto eu me confortava com a presença amigável daquele senhor, estava o síndico discando desesperadamente para a temível guarda de trânsito. E olha que o homem foi poderoso mesmo. Veio a motocicleta aos trinta minutos do segundo tempo. Conversei com o guarda, expliquei a situação e ele. Educado e compreensivo, disse que esse era o dia a dia da cidade. Depois de preencher um relatório, com o meu "depoimento", saiu em disparada, provavelmente para atender a uma chamada ainda mais importante. Bem, foi isso. Nos descontos, chegou o guincho e levou meu carro para a oficina.

No apito final dessa maravilhosa experiência antropológica percebi que há muitos cidadãos que pouco praticam daquilo que um certo Paulo Freire chamou de construção da cidadania. Ainda bem que houve uma minoria que se prontificou a oferecer o conforto à ameaça, o que nos mostra que existe sim uma razão para um dia retribuir, a um próximo, este belo gesto de humanidade e de respeito. E quem sabe se não terei a chance de oferecer esse mesmo apoio à filha de um daqueles senhores que antes com pedras nas mãos me receberam? Creio que só o futuro dirá.

Eu acredito na construção de um Brasil mais humano, mais ético e mais cidadão e sei que às vezes dá vontade de dizer que tá tudo errado e que nunca nada vai mudar, mas isso seria conformismo. E nós precisamos de exemplos. Uma grande nação cidadã se constrói nos pequenos gestos de seus súditos.



Fernando Botto, escritor

Uma jornalista e a periferia da África


Uma experiente jornalista do Brasil tem feito uma série de reportagens sobre países africanos. Intrigado sobre como se sentem os africanos sobre os trabalhos exibidos em horário nobre no Brasil e reproduzidos na África, resolvi dar uma espiada em como os africanos percebiam as matérias levadas ao ar.

O quadro de sucesso protagonizado pela jornalista, em que as vísceras de uma comunidade ou de um povo são expostas e representadas pela sua cultura, riqueza, cidandania e apego aos sentimentos de solidariedade e valor humano. O quadro levou o nome de "periferia" do Brasil, ou algo assim, auto-referindo-se, como um gesto de valorização da cultura e de enaltecimento da figura do "pobrinho, mas limpinho".

A conclusão que tenho, por enquanto, é que Periferia do Brasil vista por brasileiros é uma coisa e Periferia de países africanos vistos por brasileiros é outra. O apontamento crítico que faço se refere às conseqüências de "inclusão", supostamente objetivadas e o contexto preconceituoso que efetivamente é reforçado pelo quadro.

Concretamente, fez-se uma produção em Angola. Creio que foi inadequada e desfinada a nota musical que inaugurou a série de reportagens feitas no país: numa das primeiras falas, a jornalista afirma que já viu muita coisa, mas aquilo era "sinistro". Analogamente é como se um médico visse o resultado de um exame de um paciente - que esperava boas nótícias - e dissesse "eu já via muita coisa, mas o teu exame tá sinistro".

O que notou-se, da matéria foi a ênfase ao lado da pobreza, da sujeira e da escuridão do país, o que foi interpretado por muita gente deste outro lado do Atlântico como uma atitude de desrespeito pelo povo africano.

A propósito, lembro de um programa brasileiro de entrevistas, música e público jovem que passou num dia desses em que, ao acaso, o apresentador convidou um moçambicano para falar. Ele falou e disse. Teceu uma crítica à jornalista por mostrar somente o lado miserável do país. E ressaltou que Moçambique não era só miséria, que tem muita coisa bonita por lá.

Quando mencionei que esta espécie de abordagem reforça e cristaliza o preconceito, me lembrei de dois autores que sustentariam este posicionamento. Estou me referindo ao Malcolm Gladwell e ao Burdieu. Expor a periferia como forma de inclusão é uma maneira extremamente delicada e complexa de ser colocada em prática.

A sensação que transmite ao telespectador é algo como não, não, não, não, não, não e sim. Este último é a parte boa da matéria, a cultura daquela comunidade ou o suor de cada dia do senhor José das Couves que acorda todo o dia cinco da manhã, com reumatismo, tosse e ataques de caspa para caminhar oito quilômetros até não me lembo onde e não sei porque. Mostrar pobreza é "não", expor dificuldade é "não", contar como a vida ali é dura é "não". O único "sim" muitas vezes é dado à história de luta das pessoas que lá habitam. A quantidade de mensagens negativas na imagem supera, com dois cavalos de vantagem, as mensagens positivas que se diz enfocar. E isso educa, quer tenhamos ou não consciência disso.

Essa é aquela velha e surrada crítica que muita gente faz aos autores de novelas que colocam pessoas lindas, ricas, com estilo de vida interessante, sedutoras e poderosas que cometem pecados capitais como se fossem uma excentricidade. Na mesma trama, há uma pessoa pobre, de bons princípios, honesto e trabalhador. Cheio de "poblemas". Com quais das opções as pessoas preferem se identificar? Será que isso contribui, de alguma maneira, para construir personalidades que hoje nos dizemos "surpresos" de notar na classe política brasileira, por exemplo?

Mostrar pobreza na África é um lugar-comum e de pouca criatividade. Colocar uma lupa na periferia dos países africanos, é uma exposição indelicada, deselegante e pejorativa aos nossos co-irmãos que foram, desde sempre, considerados o lado subdesenvolvido do mundo. Creio que ações que coloquem em evidência estas características reforçam o preconceito. Até nos países da Comunidade Européia têm pobreza e miséria, mas não é essa a imagem que eles têm prazer de transmitir ao mundo.

Por fim, você deve estar cansado de ler e eu de escrever. Portanto, concluo: abordar perifeira de outro país exige um cuidado extra do que abordar a periferia do próprio país. No Brasil, sabemos que além das imagens da periferia, existe muito mais. O país não é só a periferia. Porém, quando se mostra esse tipo de abordagem de Angola, por exemplo, no Brasil será reforçada a imagem de que África é só pobreza e isso é injusto. Lembro que quando houve um episódio do desenho animado Os Simpsons no Brasil, em que o Homer foi sequestrado por um taxista maluco no Rio de Janeiro e havia macacos nas ruas, muitos brasileiros ficaram encolerizados, dizendo que isso ia passar uma imagem muito ruim do Brasil no exterior.

Limão no olho dos outros não arde? Sou adepto do estilo de comunicação criativa, por isso farei uma sugestão: Que tal alguém fazer uma reportagem sobre a pobreza e a miséria na França ou na Inglaterra?

Ah, essa foto acima é de Angola, da marginal, com vista para a baía de Luanda. Pessoalmente não vejo nada de sinistro.

Comentário do artigo do Reinaldo Azevedo, na Veja

Reinaldo Azevedo, articulista da Revista Veja escreveu um artigo condenando a idéia de reformar a língua portuguesa. O cronista sustentou que é importante saber aquelas regrinhas sinistras do português formal e que o Paulo Freire realizou um desserviço para a educação. Encaminhei um comentário à revista, abaixo colado:



Senti uma convocação íntima para oferecer um ponto de vista alternativo à apologia gramatical imposta pelo articulista no texto "Restaurar é preciso; reformar não é preciso".


Honestamente, ainda não encontrei a importância exagerada em se compreender onde está o predicativo do sujeito de um trecho do hino nacional. Prefiro ser um cidadão que saiba interpretar um texto a ser aquele que encontra o predicativo do sujeito num piscar de olhos. Aliás, a educação que pode ser pregada num modelo cartesiano, também pode ser construída, no modelo de Paulo Freire, que inaltece a subjetividade em detrimento da objetividade.
Ora, técnica, teoria, ordem e progresso, desprovidos de ética, consciência e cidadania, constróem seres humanos movidos pela sede de mostrar resultados a qualquer custo, de enriquecer materialmente sem a devida reflexão para a espiritualidade, de atingir e se manter no poder a qualquer custo.
Creio que esse modelo de educação defendido pelo autor, sob o pretexto de discutir reforma ortográfica, deva ter funcionado em outro país e em outra época e já teve longos anos de tortura para inocentes estudantes que se viram obrigados a engolir textos indigestos, apenas porque apeteciam os paladares retrógrados de (des)educadores ortodoxos.


Penso que educação é feita de pessoas, que possuem a própria história, a própria cultura e individualidade. Desconsiderar a subjetividade do ser humano é negar aquilo que nos faz diferente uns dos outros. O desafio não é diferenciar pessoas, mas harmonizar diferenças e construir cidadãos, ao invés de domar estudantes ávidos por encontrar o predicativo do sujeito pelas frases da vida.




Att,




Fernando Botto
Luanda, Angola
Mestre em educação pela PUC-PR

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