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sexta-feira, 2 de abril de 2021

Coronavírus: relato, reflexões e lições

 

Poucos assuntos dominaram a pauta de tantos noticiários, rodas de conversa informais e redes sociais por tanto tempo quanto novo coronavírus. Diante de tantos encontros e desencontros, é possível atestar que a medicina tem uma poderosa capacidade de mapear e de descobrir cada vez mais sobre a doença, proporção que muitas vezes não acompanha o conhecimento sobre o paciente em sua singularidade. Aí entram as habilidades sociais das pessoas que têm algum tipo de contato com o paciente, das quais pode se destacar a empatia, que representa um bálsamo nessa distância abismal que separa um conjunto de sintomas a serem tratados da pessoa que os apresenta.

Os currículos das faculdades de medicina cada vez mais valorizam a relação médico-paciente, pois entre livros, teorias e ensaios clínicos randomizados, é preciso que os conhecimentos produzidos pela ciência sejam apropriados por médicos que vivam sua profissão permeando suas práticas com sabedoria a humanização.

O conceito de saúde evoluiu, do silêncio dos órgãos assim definido por Xavier Bichat, pai da anatomia, ao bem-estar biopsicossocial, preconizado pela OMS. Frequentemente subvalorizado, o fator psicológico se mostra um componente crucial para a evolução clínica dos pacientes acometidos pelo COVID19. A mente é poderosa, mas sua força pode ser canalizada tanto para superar doenças quanto para o agravamento do quadro. Por isso, uma medicina que proporciona ao paciente a esperança e que desperta no mesmo a confiança e a sensação de que ele está sendo cuidado de verdade, com atenção e respeito promove uma dose extra de vitalidade que tem influência na capacidade de resposta imunológica mais efetiva.

Esse papel de estímulo psicológico, de apoio e esperança também ganha contornos de relevo quando outros profissionais se aproximam do paciente em tratamento, em especial enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos e assistentes sociais. Mas não me restrinjo a esses profissionais. Sempre defendi que o treinamento de equipe das instituições de saúde deve ser proporcionado a todos os seus quadros, o que inclui terceirizados de todas as áreas – sem exceção. Posso relatar, de experiência própria e alheia, que algumas das melhores pílulas de otimismo me foram oferecidas por profissionais de apoio administrativo e operacional. Entre eles, o recepcionista do estacionamento da clínica onde fiz exames, a atendente de telefone do plano de saúde e do laboratório, e as pessoas que me conduziram em todo o processo das testagens até a retirada dos laudos.

Os profissionais de apoio são igualmente heróis sem capa. Pelo menos a ampla maioria deles, que permanecem sob pressão de estarem constantemente em contato com exposição ao risco não apenas pessoal, mas junto de seus familiares, que indiretamente são submetidos aos perigos de contaminação indireta. Os profissionais da linha de frente se protegem, mas ninguém está livre de se tornar um uber do vírus, o transportando de lado ao outro, de modo assintomático. Por isso as medidas de prevenção devem ser mantidas mesmo para os vacinados.

Meu contágio tem elevada probabilidade de que tenha ocorrido na empresa onde trabalho, pois vários membros da alta gestão se contaminaram concomitantemente. Notei um espirro de um colega, que já no dia seguinte começou a ter sintomas agravados. Na semana seguinte, outro colega deu um espirro e relatou uma leve dor de cabeça. Diagnosticou também. Dias depois, outro colega, mesmo sem sintomas, testou positivo. Vou chamar de dia 1 quando tive o último contato pessoal com um colega que foi diagnosticado, data provável do meu contágio. Praticávamos cuidados de uso de máscara, distanciamento e frequente aplicação de álcool em gel, no entanto, reuniões constantes e as típicas cobranças por resultados de qualquer ambiente empresarial também representam riscos de maior exposição.

No dia 2 iniciei o trabalho remoto numa decisão tomada para ampliar essa modalidade para toda a empresa, nos setores que tal providência pudesse ser adotada sem prejuízos aos processos da companhia. Nenhum sintoma e excelente disposição até então. No dia 3, por desencargo de consciência, fiz um teste PCR, que resultou negativo. Experiência incômoda, mas, para mim, de muito menor impacto quando comparada ao terror que foi propagado por outras pessoas do que era a sensação do cotonete penetrando pelas narinas. Isso sim é um desserviço: espalhar o medo de fazer um exame.

No dia 5, dia em que dormi apenas umas quatro horas, o que é muito pouco para o meu organismo, ao caminhar num lugar isolado, acabei sendo atacado por uma gangue de butucas (ou mutucas dependendo da região). Foram mais de quarenta picadas, harmonicamente distribuídas entre as pernas, abaixo dos joelhos. Naquela noite, não consegui dormir sequer duas horas contínuas por conta das coceiras nas picadas. No dia 6, o quadro alérgico se intensificou e picadas que ficaram rígidas e de cor vermelha intensa. Tomei um potente anti-histamínico e a coceira cessou. No dia 7, sem sentir mais as coceiras, comecei a apresentar dor de cabeça e febre. Para meu infortúnio, o local onde fui atacado pelos insetos poderia sugerir infecção por dengue ou por chikungunya.

Iniciei com o antitérmico. A febre não baixou, mas as dores deram uma aliviada. Os 37,5oC se repetiram pelos dias 8 e 9, quando a asma começou a exigir a bombinha e a garganta deu uma arranhada. Acordei com uma dor insuportável na lombar. Começou a doer com mais intensidade as costas e o peito. Fui me aconselhando por telefone por um médico conhecido, que me recomendou aguardar até o dia 10 para repetir o teste do COVID-19. Enfim, no dia 10 consultei um otorrino que constatou uma faringite, pediu exames de sangue e uma tomografia de tórax, receitou corticoides, antibiótico e um xarope para tosse. Disse que a febre deveria abaixar com os antitérmicos em breve.

No dia 11, novo teste do cotonete no nariz, quatro ampolas de sangue e a tomografia. A febre subiu para 38,5 oC e nada de baixar, mesmo com a dose maior de antitérmico. Uma tosse leve e contínua, sem secreção, se mantinha. A disposição e a energia estavam boas, ainda dando conta do trabalho, mas por precaução, me encontrava em total isolamento desde o dia 7.

No dia 12 as dores nas costas, coluna e lombar deram trabalho. A febre nada de ceder, nem meio grau. Os 38,5 oC se tornaram o meu novo patamar basal. O apetite diminuiu drasticamente e comecei a enjoar. Em nenhum momento cheguei a perder olfato ou paladar. No dia 13, chegam os resultados de glicemia alta, resultado dos corticoides injetados, coagulação boa e hemograma razoavelmente normal. Ah, e o teste do COVID-19 positivou. Alívio, porque aí já sabia o que estaria tratando. Mas naquela noite, acordei 5 horas da manhã, numa imensa agitação, tomei um banho, comecei a andar no quarto de um lado para outro, senti uma angústia extrema, vontade de morrer. Estava diante de uma crise de ansiedade. Começou a coçar o nariz por dentro e os pensamentos aceleraram a mil. Pensei em sair de casa para correr, porque precisava aliviar aquilo. Felizmente tenho alguns conhecimentos sobre essas crises e consegui aplicar um protocolo para me colocar no aqui-e-agora. E em seguida, depois de tomar meio comprimido de rivotril, aos poucos me acalmei e dormi. Foi um desespero só.

O resultado da tomografia, que peguei no dia 14, indicava 25% de comprometimento pulmonar, o que certamente estava pior nos dias seguintes, que já dormia sentado por não conseguir respirar bem, embora o oxímetro indicasse sempre 94 ou 95. Pneumonia diagnosticada.

Aí entra o fator social da saúde biopsicossocial. Pessoas pulam do bueiro com toda sorte de indicação, determinação, ameaça (depois não diga que não avisei, hein?), conselho e, por exceção, apoio. A maioria que te provar que ela não te contaminou, ou busca aplacar uma sede insaciável de saber cada detalhe, 99% motivada por um composto de curiosidade com sadismo, claro, cuidadosamente disfarçada de um discurso de cuidado e apreço. Tais pessoas não buscam verdadeiramente prestar apoio, mas apenas aplacar a própria ânsia pela autopreservação, em outras palavras, como maximizar as chances delas, caso se contaminem. Ressalto que isso não se aplica a todas as pessoas, mas a uma parte delas que, infelizmente, mesmo que minoria, afetam negativamente o emocional do adoecido.

Nesse período de adoecimento, tendemos a nos comunicar menos com as pessoas, porque o abatimento nos retrai e a energia vai se esvaindo aos poucos, como a areia que escorre entre os dedos no punho fechado. Os dias seguidos de febre que não baixavam já traziam uma preocupação adicional. Respirar fundo era impossível, porque resultava em dor e mais tosse. Esse afastamento de tudo e de todos me fez constatar algumas coisas. Uma delas é que eu procurava muito mais algumas pessoas do que elas a mim.

Às vezes acontece de termos valor e apreço por pessoas sem o mesmo grau de reciprocidade, procuramos, telefonamos, mandamos constantemente mensagens, mas se deixarmos de fazer isso, a relação desaparece como se nunca tivesse acontecido. Enfim, não é culpa dessas outras pessoas, porque elas estão sendo espontâneas e honestas consigo mesmas, no entanto, apenas estão expressando, pela omissão, que a importância que temos em suas vidas não é assim, tão significativa quando supúnhamos. Interessante que se você procurar essas pessoas uns meses depois, ou encontrá-las num mercado no setor de laticínios, vai ouvir algum tipo de expressão como “você sumiu! nunca mais deu notícias...”.

É claro que há honrosas exceções a essa constatação. Há pessoas que mesmo sem falarmos por anos, se elas imaginassem um quadro dramático se instalando na sua vida, imediatamente não mediriam esforços para oferecer o que estivesse a seu alcance. Por isso me refiro a outro tipo de contato, de relacionamento, falo daquelas pessoas que toda semana fazemos contato, damos um alô, contamos um pouco de nós e perguntamos como vão. Essas pessoas, quando não notam a nossa ausência, expressam uma autêntica indiferença afetiva. Para alguns, uma constatação um tanto dolorida, mas o mundo também é feito de frustrações, de doações unilaterais que acreditamos estarmos sendo correspondidos, golpes e trapaças emocionais.

Ter amigo já é difícil e conservar amizade é trabalhoso. Ser amigo às vezes é um saco. É ver o amigo fazendo burrada e ter que aturar, é dar bronca, é concordar, discordar, se importar, receber crítica e até uma e outra malcriação. Mas amigo não se ausenta, pelo contrário: ele estranha a ausência. Enfim, uma amizade é como uma flor, que precisa ser regada e cuidada. Não é como uma suculenta que se adaptou a viver confortavelmente com seus espinhos no deserto.

Família é um caso a parte. Se você encrava uma unha pode deflagrar uma crise sem precedentes no grupo familiar de whatsapp. Em minutos brotam orações, receitas, indicações médicas e de benzedeiras, avisos dos riscos de infecção grave, chás milagrosos e constantes monitoramentos. Mas numa situação de maior gravidade, a família se preocupa ainda mais seriamente e, às vezes, até quem está um pouco afastado, se reaproxima. E há quem se expresse emitindo duplo sentido no modo de amar e de importar: o jeito de cuidar é culpar você por estar nessa situação, te advertir do que deveria ter feito, como se tal constatação tivesse alguma utilidade.

E as investidas sobre o tratamento precoce? Eu sou do tipo mais acadêmico, cauteloso com pesquisas que possuem correlação alta e incerta relação de causalidade. Recebi conjuntos de pérolas que determinavam tomar um apanhado de medicações que, reconheço, até possuem efeitos positivos, mas que no meu caso, segundo os médicos, poderia ter me custado uma hepatite medicamentosa, dadas as particularidades da minha condição. Quando informava que optei por não fazer uso da ivermectina ou hidroxicloroquina, em decisão tomada junto com o médico, era enaltecido por alguns e absolutamente execrado por outros. Falta de empatia? Os mais sensatos defensores de um ou outro tratamento, apenas apresentavam sua posição, num gesto de amorosidade, mas de respeito incondicional à minha escolha, afinal, até prova em contrário, eu ainda era dono do meu fígado e dos meus rins.

Frequentemente as “orientações” vinham acompanhadas das advertências ao pensamento dissonante com expressões a exemplo de “não siga os negacionistas!”, “mais um médico que não se atualiza!”, “vai deixar a carga viral subir?”, “leia os estudos!” e por aí vai. Nessa hora parece que todo o mundo fez doutorado, embora poucos saberiam explicar o que seria uma metanálise. Ensaio clínico randomizado duplo-cego já seria demais. Quem tem sagacidade de ameaçar pessoas adoentadas e culpá-las pelo agravamento de seus quadros em razão de sua inépcia de aderir a esse ou a aquele tratamento deveria acompanhar seus julgamentos de uma declaração assinada disponibilizando do próprio fígado ou rim, caso necessário. Muito cômodo tomar decisões com a saúde alheia, sem responsabilidade profissional, por ter lido um ou outro artigo de internet. Apenas para constar, o médico que me atendeu por primeiro prescrevia hidroxicloroquina e ivermectina em algumas situações para alguns pacientes, mas sugeriu que não seria adequado para mim.

Mais uma vez ressalto que o tratamento precoce pode sim ter eficácia demonstrada, mas eu, pessoalmente, não me senti confiante e seguro para seguir nessa direção e preferi que os médicos conduzissem as questões de medicina relativas à minha saúde. Posso dizer que o elemento social me prejudicou mais do que ajudou pelas pressões. Foi como um cabo-de-guerra em que a minha saúde era disputada como um troféu para egos frustrados. Se eu não faço o que dizem, teria sido a sorte que me ajudou. Se piorasse, seria porque não fiz o que me recomendaram e se tivesse feito, teria me curado antes. Ah, e sem falar nas sequelas que teriam sido evitadas se tivesse aderido ao tratamento defendido.

Pelo que fui informado, se eu tivesse sobrecarregado meus órgãos antes com medicações diversas, com os agravantes concomitantes que aconteceram especificamente no meu caso, teria sido uma escolha potencialmente catastrófica. Sei que muitos que recomendam algo é para contribuir com a melhora, no entanto, seu eu quero entender de fermentação de pães, prefiro me instruir com o padeiro, ainda que eu tenha um bom mecânico.

Enfim, voltando ao diário: no dia 14 iniciei um segundo antibiótico, mais potente, sem interromper o primeiro. O médico foi bastante atencioso e, dada que sua especialidade era otorrinolaringologia, recomendou que eu consultasse um pneumologista. A febre não cedia com dipirona ou paracetamol, permanecia no patamar mínimo de 38,5 oC, com alguns momentos preocupantes que batiam os 40oC. Quando chegava nesse ponto, colocava panos úmidos na testa. Isso dava um pouco mais de conforto. Ele disse que teria que baixar nessa nova associação.

Cada noite uma surpresa nova. Sempre durante o dia parecia tudo estar na mesma, tirando a disposição que diminuía e a fraqueza e tontura que aumentavam. Até então fui perdendo o apetite e algum peso. Naquele primeiro dia de um novo antibiótico associado, à noite tomei uma medicação para enjoo. Inocente medicação. Em menos de um minuto, mesmo deitado, meu coração foi a 150. Ali achei que tinha alguma coisa muito errada. Mas o estado de confusão foi tamanho que não tomei outra decisão a não ser tomar banho, tentar respirar e me acalmar. O que eu tive foi uma perigosa interação medicamentosa que poderia ter sido fatal. E para constar, o enjoo não passou. Tomei um rivotril e uma hora depois, dormi.

Agendei o pneumologista. No dia 15 notei uma piora geral, mas a febre finalmente começou a ceder. E no dia 16, a consulta ocorreu e o médico, com excelente atendimento e dedicação, adicionou mais duas medicações, uma delas, um corticoide. Nesse momento, o comprometimento estimado dos  pulmões superava os 50%, devido à associação da asma às pneumonias viral e bacteriana. A meu favor estava o tratamento fármaco que já contava com alguns dias de atenção. Num certo momento, constatei que eu deveria ter cursado administração de medicamentos para controlar tudo aquilo que estava tomando. O pneumologista comentou que meu caso era considerado moderado para grave e que os próximos quatro dias seriam decisivos. Meu comprometimento pulmonar já devia estar em 50%, mas como a oxigenação estava sob controle, recomendou que permanecesse em casa e apenas se baixasse a 92 fosse ao hospital.  Revelou que isso poderia ocorrer, mesmo com alguma melhora até esse dia, portanto, atenção e cuidados deveriam permanecer. A oxigenação nesse e nos dias seguintes ficava quase o tempo todo em 92, às vezes ficava em 91, mas como era por menos de cinco segundos, eu aplicava aquela regra de que menos de cinco segundos não conta. É o mesmo princípio de quando cai uma comida no chão e você come em menos de cinco segundos e finge que nesse tempo, o pão com manteiga não se contamina. Bom se fosse verdade, mas é uma mentira conveniente, um autoengano que vem a calhar. O receio de internação é de apanhar alguma pereba, ou mais uma, que não estava nos planos.

Naquele mesmo dia à noite, horas depois de tomar um novo corticoide, veio uma sudorese de ensopar as roupas. Mais um banho, mais suor. O médico me informou pelo whatsapp que não havia problema, mas para quem dorme, é bastante desconfortável e nos deixa apreensivo estar numa cama literalmente molhada e trocar a camiseta três vezes durante o sono por estar encharcada.

No dia 17, acordei com uma sensação levemente melhor, apenas uma dor de cabeça um pouco chata, mas de modo geral, uma sensação de respirar melhor. A dor nos pulmões estava mais leve e acho que isso se deve também ao corticoide e aos antibióticos que fazem efeito cumulativo, além da medicação para asma, que era um pozinho de aspirar. No dia 18 tive uma noite um pouco agitada, acordando às 5h da manhã, dessa vez por causa de uma azia. Ainda que tenha tomado os medicamentos com refeições, o estômago já começou a reclamar. E nesse dia, a sensação daquela exaustão, que era esperada, finalmente veio. Pequenos movimentos, como subir uma escada, já promovem um total exaurimento do corpo. Talvez esse abatimento seja o resultado de uma ressaca medicamentosa somada aos esforços do organismo em combater a moléstia, assim como os dias de febre alta consecutivos. A espera pela melhora também estressa, assim como as noites mal dormidas. Mesmo diante de todo esse cenário desfavorável, consigo perceber que, de modo geral, experimento uma sensação de melhora, pois as dores no pulmão estão cada vez menores. Não estou tomando analgésicos e já começo a pensar mais no futuro do que no presente.

Enfim, no dia 19 tudo leva a crer que o pior já passou, embora a oxigenação permaneça entre 92 e 94. O médico alertou que não se pode subestimar essa doença, porque ela pode dar uma melhora e, em seguida, um mergulho súbito de piora que leva à hospitalização, por isso o monitoramento permanece sob atenção, em especial o oxímetro. A vontade de escrever surgiu num dos momentos de salto de energia que vieram, durando algumas horas, sempre durante o dia. Quando a noite se aproximava, sempre uma surpresa de piora se anunciava. Isso foi realmente terrível. Com 20 dias do início do contato inicial com o vírus, posso afirmar que estou superando a doença, embora a alergia tenha votado com tudo após terminar os corticoides e tenho acordado por volta das 5 horas da manhã com coceiras intensas nas pernas abaixo dos joelhos, onde havia sido picado há algumas semanas. E dá-lhe anti-histamínico. O que segue agora é o acompanhamento do pneumologista e uma verificação cardíaca. Os médicos, ao testarem o dímero-d, sugeriram que eu não fizesse uso de anticoagulantes, pois há um risco de hemorragia interna.

Duas semanas depois dos sintomas abrandarem, fiz uma nova consulta com o pneumologista e exames. De acordo com os resultados, minha capacidade pulmonar foi outro fator que me ajudou muito. Tenho desde pequeno uma leve projeção do tórax, conhecida como "peito de pombo". Essa variedade anatômica proporciona um volume de ar sensivelmente superior à média das pessoas com minha altura e peso e essa característica, que na infância provocou alguns episódios de bullying, hoje pode ter sido decisiva para conseguir manter a oxigenação ainda na casa dos noventa. O médico me informou que estou tendo ótima recuperação e que oportunamente convém checar como está o coração e que nos próximos três meses ainda posso ter algumas dores e sintomas, como alteração de olfato e paladar, decorrentes do COVID19, mas afirmou que isso tudo voltará ao normal. 

Uma das lições que aprendi com isso até aqui é o quanto o atendimento humanizado dos profissionais contribui significativamente para a esperança e para a recuperação do enfermo. O paciente sente o desconforto por sua condição de debilidade e o lado emocional tem muita importância, porque aprendi que a mente tem que ajudar o remédio. A mente é mais poderosa do que qualquer fármaco. Pode atribuir a um placebo o poder da cura, assim como otimizar um princípio ativo, potencializar os efeitos colaterais e até mesmo bloquear os efeitos de medicações.

Aprendi também que há pessoas ávidas por verem suas teorias que versam sobre o que é melhor para você prevaleçam a qualquer custo, mesmo que seja pelo preço de te colocar numa fila de transplante hepático. Embora eu possa afirmar que se isso viesse a ocorrer, provavelmente você ouviria dessas pessoas que é um ingrato, que deveria agradecer, porque se não fosse por elas, nem estaria mais por aqui para entrar em tal fila... Enfim, há quem coloque as necessidades de estar neuroticamente sempre certo acima de qualquer coisa.

Por fim, não tenho elementos para me posicionar conclusivamente sobre a eficácia tratamento precoce, mas tenho sim para dizer que tomar essa decisão sem acompanhamento médico é algo bastante arriscado, pois cada pessoa tem um organismo tem um histórico que reage de uma determinada maneira e, como disse no começo, a medicina pode entender muito e cada vez mais da doença, mas pouco conhece do paciente. Por isso é preciso saber distinguir entre os profissionais tratadores de doenças e os cuidadores de pessoas. Merecem aplausos, como já mencionei, os currículos construídos de formações dos profissionais da saúde que contemplam um preparo para uma prática mais humanizada, o que contribui para uma saúde biopsicossocial de melhor qualidade e de melhores resultados.


Fernando Botto, doutor em educação.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

O papel do Judiciário frente a uma sociedade que adoece

O papel do Judiciário frente a uma sociedade que adoece*
por Fernando Botto**
Quanto mais doente está uma sociedade, maior importância terá o papel do Judiciário
* Publicado no jornal Gazeta do Povo, 21/5/2016
Existe uma relação entre os conflitos de uma sociedade e a importância de seu Poder Judiciário. Numa sociedade utópica, livre de conflitos, pouco protagonismo social teriam seus magistrados. Vale dizer que a Justiça não é feita apenas de juízes, pois ela depende de advogados, promotores, estatísticos, psicólogos, médicos, assistentes sociais e peritos das mais diversas áreas do conhecimento, além de administrativos, seguranças, motoristas, recepcionistas e secretárias. E seria possível administrar a justiça sem a limpeza pública e sem água, energia, internet e telefonia? Quando se trata do funcionamento do Estado, todos são importantes. É preciso mobilizar muitos recursos para tratar as patologias das relações sociais.
A intervenção do Judiciário nos conflitos levados ao seu crivo certifica a falência do diálogo social. Vivemos uma espécie de epidemia em que o “ficar de mal” entre gente grande bate primeiro às portas do judiciário antes mesmo das partes trilharem o diálogo direto. O processo judicial é transformado num palco para o exercício de comportamentos vingativos e destrutivos das partes. O número crescente de litígios no judiciário interfere na qualidade dos julgamentos, prejudica a celeridade e atenta contra uma prestação jurisdicional eficiente e satisfatória e, mais grave do que isso, sequestra a qualidade de vida dos julgadores que se veem sufocados e frustrados, pois anteveem um futuro ainda mais caótico. A saúde dos operadores do direito deveria ser cuidada ao invés de escravizada pelo Estado.
"A sociedade adoecida incentiva a consumismo, o hedonismo e desqualifica as suas instituições"
Não se trata apenas da saúde do corpo, mas da mente e das relações sociais, como preconiza a Organização Mundial da Saúde. A despeito disso, o Estado enxerga como única solução uma progressiva compensação salarial, algo que representa mais uma espécie de adicional por insalubridade incorporado do que políticas públicas concretas que garantam aos magistrados uma carga de processos adequada e não desumana.
Num efeito cascata, os cursos de Direito permanecem com uma orientação curricular fortemente valorizadora do litígio e infimamente voltada às relações humanas, à psicologia e às negociações extrajudiciais e às transações. O abarrotamento do Judiciário vem sendo tratado como doença e não como sintoma de um sistema social que beira ao colapso. Culpa-se o doente por sua doença. O Estado permanece como o maior cliente e beneficiário do Judiciário. Políticos incompetentes e de duvidosas intenções causam danos à sociedade, mas a conta, quando cobrada, será apresentada às futuras gestões.
A sociedade adoecida incentiva a consumismo, o hedonismo e desqualifica as suas instituições. Há pouco incentivo ao diálogo, ao respeito ao próximo e às ações que levavam crianças a “fazer as pazes” no jardim de infância. Em que ponto entre a infância e a vida adulta a sociedade se perdeu? Os operadores do Direito estão adoecendo por conta de um sistema intencionalmente criado para a manutenção do caos. A sociedade clama por profissionais que se sintam realizados ao invés de escravizados. O dinheiro é fundamental, mas ele por si só não compra o bem-estar dos magistrados. Um juiz saudável profere decisões saudáveis. E é importante perceber que quanto mais doente está uma sociedade, maior importância terá o papel de seu Poder Judiciário.

*disponível em http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/o-papel-do-judiciario-frente-a-uma-sociedade-que-adoece-alrror0etl2bpqqxnzw0o8qdg

**Fernando Botto Lamoglia, palestrante, advogado, psicólogo e escritor.

terça-feira, 14 de abril de 2015

Tia Zilda ainda vive


                Zilda Arns foi uma pessoa que marcou a vida de muitas pessoas. Muitas delas ainda bebês foram salvas por mãos amigas que operam verdadeiros milagres nas vidas do próximo a cada dia. Nos anos em que vivi em Angola, conheci algumas dessas pessoas e me envolvi com atividades das Pastorais da Criança e da Família. Sempre achei fantásticas as oportunidades de interação humana nesses projetos de responsabilidade social, ainda mais na África, que tinha todo um toque cultural nas explosões de cores, de emoções e de fatos pitorescos que merecem ser contados nas milhares de fotografias que conservo carinhosamente arquivadas. Isso tudo sem falar naquela misteriosa atmosfera de curiosidade recíproca que marcavam cada oportunidade de encontros, palestras, atendimentos e mesmo em situações informais de pura confraternização.

                Naquele ano de 2010 encontraria a dra Zilda em Angola. Já a conhecia em terras brasileiras, mas em Luanda não estivemos juntos. O destino decretou a sua convocação celestial frustrando uma aguardada agenda, enfim, a areia do tempo esvaiu-se precocemente nas ampulhetas de sua vida. E que vida!

                O que me motivou reativar esse blog foi um misto de acontecimentos recentes. Num deles, fiquei surpreso ao visitar o Memorial Zilda Arns em Curitiba e fiquei petrificado diante de uma foto dela segurando a pequena Clara em seus braços. Eu tenho guardada uma camiseta idêntica a aquela e espero que em breve ele faça parte do acervo do Memorial. Na verdade, aquela camiseta também tem uma história, que a conheço bem porque fiz parte dela. A Clara visitou a minha casa em Luanda, na companhia das irmãs Joceli e Isabel. Era um bebê lindo, com uma história absolutamente incrível. Indo para o epílogo sem desmerecer o prólogo e o logos, ela acabou sendo adotada legalmente por um casal de médicos italianos que prestavam serviços voluntários em Angola. Eles se apaixonaram por aquele sorriso que hoje tem 8 anos de idade e que ri à toa em terras italianas. A Clara faz judô, inglês, toca bateria, vai à escola, enfim, faz tudo aquilo que uma criança deveria ter: uma infância feliz.

                Quando levada para as irmãs da Pastoral por crianças de rua, numa situação de abandono, a menina contava com dois meses de idade e pesava um quilo e meio. Ficou um mês no hospital. A mãe da Clara, por surpreendente que pareça, a visitou algumas vezes, mas sem a intenção de tê-la sob seus cuidados maternos novamente. Ela sofria com o alcoolismo e sua saúde ficou comprometida seriamente depois de contrair HIV e de apanhar uma devastadora tuberculose. A mãe da pequena Clara faleceu há cerca de dois anos.

Missa em memória da dra Zilda em Angola
 
                No dia 13 de março de 2010 fizemos uma missa em homenagem póstuma à dra Zilda, na igreja Sagrada Família em Luanda. Na época escrevi um post nesse blog, com o título "Missa em memória da dra Zilda Arns em Luanda". As camisetas verdes e brancas das pessoas participantes possuem a foto dela segurando a pequena Clara.

                Esta é uma das tantas histórias de transformação que ouvi e vivi em Angola, terra que muito me ensinou e ensina até hoje. Tia Zilda, assim ficou registrado o sentido da palavra amor na memória ainda desprovida da fala de um bebê chamado Clara. Amor este que ficou como lição para inspirar as nossas intenções e as nossas ações.

*Fernando Botto é psicólogo, advogado e escritor.

terça-feira, 1 de maio de 2012

A criatividade na simplicidade

Por Fernando Botto


  Certa vez, fiz um cruzeiro num pequeno barco-hotel. Logo no embarque, nós, os passageiros-hóspedes, fomos recebidos pela tripulação, disposta em fila, cada qual com a seu uniforme de trabalho: o cozinheiro de branco com uma espumadeira na mão, a recepcionista de terninho, o comandante com seu imponente traje, os garçons de gravata borboleta e os demais tripulantes todos nos cumprimentavam com um humilde e iluminado sorriso. Aliás, um sorriso tão verdadeiro que sentia-se que o corpo todo sorria.
  Todos sabemos quando somos recebidos com alegria de verdade. Aquele era um time de pessoas que transpiravam paixão por nos receber a bordo. Mas confesso que fiquei intrigado: será que aquela excelente recepção não era um mero teatrinho bem ensaiado? Dias depois, pouco a pouco, fui percebendo que a alegria da tripulação não era fruto de uma palestra ou de um treinamento motivacional, mas resultavam de uma relação daquelas pessoas com o trabalho em si.
  E, naquele ambiente de comprometimento, como clientes, fomos surpreendidos diversas vezes por coisas simples e inusitadas, a exemplo da maneira como as mesas eram arrumadas no restaurante, das festas interativas preparadas de modo a despertar a vontade de participar e, como mostra a fotografia, a cada novo dia, uma nova maneira de dispor as toalhas dos quartos.
  Como cliente, guardei recordações inesquecíveis. E isto me faz refletir que, para sermos marcantes, para termos uma empresa marcante, com produtos e serviços marcantes, podemos aproveitar algo de muito precioso que podemos extrair do nosso time: a criatividade.
  E é importante levar em conta que a criatividade não se impõe. Ela tem que ser incentivada, aplaudida, bem cuidada e estimulada, porque todos nós somos criativos, temos grandes ideias e, muitas vezes, precisamos sentir que estamos todos no mesmo barco navegando numa só direção, orientada para um destino. Aliás, tão importante quanto definir o destino e buscá-lo, é perceber que a vida acontece durante a trajetória.

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